Thursday, February 17, 2005

Sao Paulo

Não sei porque as pessoas choram. Eu a vi com as mãos cobrindo os olhos e segui. Antenas altas acima, a avenida de prédios suntuosos e uns homens parados com anúncios sobre os corpos, feito estátuas. Olho os olhos, também tristes, também dores. Pessoas que se cruzam rápido, meio dia, almoçar, quatro horas para o fim.

Quando cheguei o céu estava escuro, quase noite e chuvas. E acordei com um som que depois soube ser apitos de homens que andam pela madrugada vigiando as ruas. As mesmas pelas quais andei em busca de comida, estimulando luzes e refletores e enquadrada por câmeras que estão de fora para que me vejam dentro. Aceno de longe, junto com restos de jornais que voam com o vento atrás das grades, o visor ligado na TV da sala.

Bom dia sol, bom dia flores. Bom dia São Paulo! Cá estou de volta! Será que me quer agora? Será que te quero ainda? Cedo ouço o barulho dos aviões, trovões em minh`alma. Quero sumir. Quero o silêncio, mas pego o carro e saio andando pela pista do meio, subo o vidro se o sinal fecha e me derreto no calor de março sem as águas. Quem são esses que me oferecem flores, mapas, guarda-chuvas, doces, escovas que alisam meus cabelos? Os quero assim, assimétricos e revoltos. Altos. E os temo. Temo serem seres que me sumam.

No segundo dia não dormi, insônia que me insiste. Então fico à espera dos apitos até que um galo canta. E de manhã passarinhos. Mas não eram pedras? Alucinação, São Paulo, são sustos, são vidros, são luzes, são pressas. Eu medos. Medo das pedras, de seres feitos de. O que mais me mete medo são estátuas. Não homens parados como se as fossem, mas aquelas dos cemitérios e das praças. Segredo meu que conto, se souber guardar.

Na outra noite de insônias, cedo ainda, vi homens andando com seus cães pelas ruas e um saquinho de plástico para recolher os detritos dos animais. Eles estão nos shopping, nas ruas, nas casas, nos parques, nos carros. Alguns com sapatos. Alta madrugada, eu desperta ainda. Uma Kombi azul se acomoda perto da guia. Sai um homem de dentro e anuncia pelo interfone o leite. Isso existe ainda? Lembrei de uma cena que nunca vivi, mas devo ter visto em novelas. Mãos que buscam o café da manhã já cedo na varanda. E de Zica. Essa, sim, conheço. Andava com um jegue carregando latões de onde tirava o líquido branco em outras latas que levaram óleo, banha. – Olha o leite, seguia gritando pelas ruas, mas não eram ruas de São Paulo.

Amendoin, cocada, algodão doce, spray que livra multas, esmeraldas que resolvem problemas emocionais, destravam caminhos. O celular que localiza, focaliza e toca em todos os cantos e bolsos, bocas, bolsas. Promoções imperdíveis, desejos, São Paulo, ofertas, empregos, salários, promessas. Eu tenho saudades da você que vi apenas no livro de fotografias, larga e horizontal.

Meu pai, quando estava prestes a morrer, mas só depois se soube, lembrou-se de situações sobre as quais nunca tinha dito. Uma viagem à praia, não aquela em que eu estava. “Mas isso não tem o clima de Porto Seguro”, disse quando segurou minha mão e buscou com o olhar algo que lhe fosse similar naquele quarto triste de hospital.

E um dia me disse em sonhos que eu viria aqui. Parecia vivo e no mesmo dia o telefone tocou. A São Paulo que ele e suas tropas conheceram era outra. A dos retratos, talvez. As ruas em que um primo meu veio buscar seu porto seguro e seus pais andaram em sua procura até que o acharam pelo telefone anos depois em Manaus, mas nunca o viram. Os olhos da minha tia continuam úmidos, iguais aos da moça que vi na Paulista, a avenida que pensei ser infinita para acomodar tudo o que havia guardado em mim de símbolos.

Passei por ela agora em busca de um porto que seja meu, em que possa derramar meus desejos, mas já não o creio seguro. Pego o Lapa T, se não quero passar por tartaruga nem parar de frente ao velho da lateral do Araçá. Deve ser um profeta, mas ainda assim me assusta. Já contei que tenho medo de estátuas, mas é só quando estou sozinha. Se me acostumo com elas e sei onde encontrá-las, preparo para o encontro até que um dia já não incomodam mais. Desvio o olhar.

Saio pela cidade olhando e desviando. Vendo rostos sem olhá-los direito. Querem o que? Temem o que? Vivem onde? Para onde querem voltar? São de todos os cantos. Pergunto numa mania interiorana de buscar semelhanças. E às vezes a metrópole se revela roça, ovo. A amiga de um amigo que conheci na festa do meu aniversário em Brasília, a vi outra vez em Goiânia, quando o amigo em comum se casou. A encontro com o namorado gaúcho, apresentado pela internet, num bar da Vila Madalena, que a bandeira do Cruzeiro ajuda a decorar. Aí tomo uma cachaça para comemorar a amiga, o Cruzeiro, a cachaça. O rótulo é a pedra grande pela qual passei tantas vezes quando São Paulo era apenas um parente próximo de São João, a melhor festa.

Ouço ruídos de carros que passam, buzinam, se chocam e um helicóptero freqüente no começo das noites. Ponho tampões pra esquecer. Três policias sob minha janela erguem as mãos com as armas para cima, para os lados, para baixo. Meio performáticos à procura. Ficam horas até desistir de encontrar seres que moveram a cortina do banco à noitinha. Apago as luzes e me tranco no quarto, sem querer ser alvo de delírios alheios nem assunto dos jornais do dia seguinte. Mulher baleada por policial enquanto falava ao telefone, deveria ser a manchete. Eu não li a descrição que viria abaixo sobre mim, minha vida, minha história, mas discordo de antemão. Quem vai chorar minha morte?

A cidade lá fora me oferece um milhão de possibilidades, mas não saio do quarto. Não me sinto parte dessa cidade gigante, quando vejo a fila de carros na TV, congestionamento quilométrico, se tem chuva. Hoje o dia virou noite às 5h e caíram pedras, depois de um calor que me levou à piscina, nadando sem contar os metros, pensando apenas nas decisões que ainda tenho que tomar. Minhas escolhas.

O que fizeram de você foi um labirinto de ruas com nomes de produtos e portas de vidros para que todos se vejam durante as reuniões e simulem uma naturalidade em meio à tensão pelo espaço. Todos vendendo seus produtos embalados em latas ou no nó da gravata. Palavras que convençam, contatos, mentiras, teatro.

E não paro de pensar nele. Nele que sentou um dia ao meu lado e disse que passaria o carnaval numa fazenda, fugindo da agitação. O que havia em comum entre nós era o gosto pelo silêncio e uma serenidade que via em seu rosto alvo e óculos quadrados de aros finos. Calmaria que os outros dizem enxergar em mim.

Depois me tiraram a cadeira vizinha daquela que ele se apropriou. Fui embora e o revi tempos depois no corredor do emprego que estava deixando e ele visitava. Conversamos rápido, sua voz calma ainda. Quinze dias depois um email me diz que seu corpo virou cinzas. Quantos desses rostos que vejo pelas janelas, nas avenidas, no metrô, no trabalho também são angústias camufladas? Dou meus ouvidos, meus ombros para que chore uma dor que conheço. Conheço em mim.

Às vezes esqueço os dilemas, tranco a porta por fora e saio por aí. Na esquina uma mulher pede ajuda. Vou seguindo, mas viro para olhar sua súplica. Lágrimas me amolecem. Diz que tem fome. Veio de Sorocaba para o Hospital das Clínicas e dois restaurantes lhe negaram comida. Dou R$ 3 e sigo pensando o que matou sua fome, quando sento na cantina do melhor polpetone e pago R$ 22 por uma cerveja e meia pizza. Minha mãe, longe, cozinha uma semana inteira com isso.

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