Thursday, September 22, 2005

Descobertas

Troquei o vaso da planta e as folhas cresceram assim rápido, o que parecia fúnebre. Nunca prestei atenção direito nelas. Secavam rápido com sede e eu dor. Apertadas num vasinho de plástico preto, esquecido num canto, com luz e sem sol. Pequenas descobertas óbvias, mas a gente demora pra aprender. Gastei 33 anos para descobrir que não quero pentear os cabelos. E me delicio e atormento com o segredo das coisas na simplicidade delas. Sou agora é o que sairá do barro. Do vaso de barro que acolheu ao verde e a mim mesma. Minha ignorância, minha introspecção, minha gula, meu desleixo, meu espelho, minha casa, minhas dúvidas, meu mundo, eu mesma, eu nada, eu sempre, eu meio, eu quase, eu metades e pretensões, inteira e medos, fragmentos e nada... Quero me desnudar no que há de sagrado em mim, no que penso que seja. Em mim e nos outros, e no que há de profano também. E não sei as medidas, o quanto de quanto, o quanto de nada. E tudo que é vida, sólido, fluido, imaginação, alucinação, medidas, balanças, litros. Litros de seu Hormínio Ferreira, que vendia cachaça e íamos juntos. Os picolés, a diversão, Palmópolis, Dois de Abril, Minas, Bahia, Brasil. São Paulo, são sustos, são chuvas, são nada, são tudo, são olhares para mim. Olhares, olhar, olhar-te, querer, querer-te, querer-te sempre, querer-te ainda. O casarão e os cômodos é tudo que lembro. A casa naquela rua, que parecia a principal e que talvez não seja nada. E não lembro mesmo a história, mas era algo meio fúnebre. Fúnebre foi ela que disse um dia que viu ele caído, partido, quebrado, partido, caído, jogado... E ele que é tudo e não viu nada. Nem sei bem, mas me contaram assim, me contaram assado. Contaram nada, eu estava lá. Fui eu quem vi, vivi, senti, olhei, escutei, cheirei, provei, peguei.... E as folhas ficaram rindo só por causa do barro.

Saturday, September 10, 2005

NÃO HISTÓRIAS

Caminhada

De muito antes das seis da manhã, quando tirou os pés de casa pela primeira vez, sabia que aquele não seria um dia comum. Talvez fosse lembrado como o dois de agosto em que o inverno amanheceu com raios de sol mostrados cedo na TV em meio às marcas da poluição que dava ao dia cores difusas e confundíveis. Apesar da estranheza do tempo, tudo igual como vários dias, a não ser pelo que viria a acontecer depois. Tomou café na padaria, leu as mesmas notícias da TV nos jornais, amarrou um agasalho de tricô no cós da calça e, ali pelas 8h, seguiu em direção à avenida Brasil. O horóscopo falara em encontros surpreendentes. Pôs-se, então, a olhar rostos buscando uma familiaridade ainda que distante para que se consumasse a surpresa à seu dia diferente apenas às terças quando cedia ao rodízio e fazia o necessário e indispensável à pé.
Naquela terça o trajeto era longo. Melhor seria com seu quatro portas, bancos de couro, direção hidráulica, air bag e outros acessórios que evitava comentar para não levantar olhos às suas posses. Dois quilômetros e meio para ir, dois e meio pra voltar não matava ninguém. E foi.
Saiu dali dos Jardins, nas imediações do Hospital das Clínicas, em busca de um exame médico na sede do laboratório no fim da avenida Brasil, quase no monumento às bandeiras. A partir da decisão de caminhar, seria um dia incomum por ser também a primeira vez nos seus 59 anos que andaria cinco quilômetros pela cidade, em meio às ruas e carros, sem grades dos parques em proteção.
Nas primeiras quatro quadras desceu a Teodoro e descobriu um som imperceptível aos carros, nos batuques e acordes das lojas de instrumentos. Disse oi aos camelôs das esquinas próximos aos faróis. Um deles nem o reconheceu, acostumado que estava a vê-lo enquadrado na moldura da janela do carro. Comprou óculos escuros gigantes desse, já que esquecera o seu em casa e os olhos não se davam bem com o sol.
Na esquina da Rebouças já se sentia outro sob as lentes escuras de um estilo que não era o seu. Sorriu para vários dos homens que viu à espera do vermelho para tentar tirar um troco no sinal. Ouviu conversas deles e até pensou que a princípio os temia, quando iniciavam nas noites e se aproximavam do vidro no escuro querendo vender flores. Flores nem tão suspeitas assim, foi o que pensou depois que ouviu os homens e se deu conta de que nos seus muitos anos circulando por um raio que sempre demandava aquela esquina, jamais tinha parado ali, estado ali assim inteiro sobre o asfalto do canteiro central enquanto aguardava passagem. Olhou ao alto com uma volta de 360 graus com cabeça e meio corpo e até gostou do que viu. “Se tivesse menos luminosos”, pensou e foi embora em passos vagos, olhando as construções da rua e tentando se lembrar do que funcionara ali há 20, 30 anos, mas só naquele dia percebeu que afora grades e muros maiores, luminosos e câmeras também, não conseguira se lembrar, mas também só passava ali de carro. Devo ter muitos quilômetros de avenida Brasil, fazia uma piadinha consigo mesmo tentando uma soma idiota de quantas vezes ocupou bancos de carros, porque nunca andara de ônibus, enquanto trafegava pela avenida Brasil e que soma numérica isso daria. Ria e fazia suas matemáticas considerando dois quilômetros de extensão e a hipótese de que tivesse passado ali pelo menos quatro vezes ao dia nos muitos dias de seus quase 60 anos.
Quando chegou à igreja Nossa Senhora do Brasil, esquecera a conta quase já chegando à conclusão de que teria visitado muitos lugares, apenas pelo tempo que circulou por ela.
Parou, fez o nome do pai e se lembrou de alguns casamentos que ali presenciara, inclusive o seu, dos poucos que sobreviveram às avalanches que seguiram ao crescimento da avenida.
E foi até o laboratório rindo dos muitos casamentos em que ou na cerimônia ou na festa algo engraçado aconteceu. Às vezes trágico como o de um colega de faculdade que morreu num acidente na volta da lua de mel. Uma história que sempre lhe deixava triste, impressionado que era com a surpresa da morte, que surge às vezes em momentos totalmente dispensáveis. Ele andava e ia somando às horas e mais alguns quilômetros de suas viagens novas primeiras vezes com a cidade numa única terça-feira pela manhã. Às vezes entrava numa rua apenas para conhecer aquele pedaço pelo qual sempre passara e aí percebia, também pela primeira vez, que tinha 59 anos circulando até quatro vezes ao dia pelo local e nunca soubera mais que algumas ruas, além de pedaços nas esquinas. E ia, via as casas, andava um pouco e voltava de novo à avenida Brasil.
Assim chegou ao laboratório num certo deslumbramento consigo próprio por ter atravessado os obstáculos imaginários da rua e até achado bom. São e salvo, tomou água e percebeu que enquanto andara nem percebera que o tempo dava sinais de chuva. Se o calor se mudasse a frio tinha o casaco na cintura para se proteger. Mas por chuva não esperava. Quando o temporal passou, seguiu o caminho de volta, não sem antes conferir o que os exames diziam de si. Colesterol bom, triglicérides e outros níveis que diziam sim era um homem saudável por isso andara dois quilômetros e meio pela manhã sem nem se cansar. E voltou seu trote de volta e quase chegando em casa, na esquina com Atlântica, a chuva voltou e ele ainda assim continuou feliz, pensando que, bom de saúde, podia até tomar uma chuva que não lhe faria mal. E foi, foi andando pelas ruas de São Paulo sob a chuva, também pela primeira vez, até cair com um raio que acertou parte a árvore, parte ele. E antes de morrer sua morte súbita pensou que se soubesse da possibilidade de chuva nem de casa sairia e se lembrou que a previsão do tempo às vezes errava e pensou pela primeira vez em outras notícias sobre as quais nunca saberia tão perto serem verdadeiras ou não. Até de sua morte duvidava.

Wednesday, April 27, 2005

Vindas e despedidas

Não me dou bem com máquinas, mas tenho medo é de gente e estátuas. Lagartos também, tudo o que rasteja. Bichos que aparecem dos buracos, minhocas. A reza de papai para afastar. Até santos. Não entro em igreja sozinha e me assustava a nossa senhora que ficava na sala enquanto ele operava tintas. Gosto de cor, cores, Miró, flores, silêncio também. E hoje não tenho medo do amanhã, mas só agora. Gosto de vozes, sons, sotaques. Pernambuco e pernambucanos, mineiros, baianos. Gosto de água, das montanhas, das do mar. Ar, rede, água. O sol me queima, me arde, me pinta. Cores? Ele preferiu colorida. Eu gosto de preto e branco e de todos os tons das flores. Samambaias nos ipês ficam melhores. Pés que cresçam, hortas que se molham todo dia. E algumas morrem. Outras só precisam de luz, outras de sol

Monday, April 18, 2005

NASCIMENTO

Diz o céu que vai chegar um menino.
Qual o nome dele?
Cairú
Vem de onde?
De Chris e Carlinhos.
Fazer o que?
Viver uai!

Viver de que?
De brisa e alegria
Pão e magia
Ver lua e estrelas
Mergulhar cachoeiras
Correr, pular,
Encantar e se encantar
Sorrir, chorar,
Fazer prova de geografia,
A alegria das tias,
O xodó de vovós e vovôs.

Boa vinda e bela vida, menino!

Thursday, February 17, 2005

Sao Paulo

Não sei porque as pessoas choram. Eu a vi com as mãos cobrindo os olhos e segui. Antenas altas acima, a avenida de prédios suntuosos e uns homens parados com anúncios sobre os corpos, feito estátuas. Olho os olhos, também tristes, também dores. Pessoas que se cruzam rápido, meio dia, almoçar, quatro horas para o fim.

Quando cheguei o céu estava escuro, quase noite e chuvas. E acordei com um som que depois soube ser apitos de homens que andam pela madrugada vigiando as ruas. As mesmas pelas quais andei em busca de comida, estimulando luzes e refletores e enquadrada por câmeras que estão de fora para que me vejam dentro. Aceno de longe, junto com restos de jornais que voam com o vento atrás das grades, o visor ligado na TV da sala.

Bom dia sol, bom dia flores. Bom dia São Paulo! Cá estou de volta! Será que me quer agora? Será que te quero ainda? Cedo ouço o barulho dos aviões, trovões em minh`alma. Quero sumir. Quero o silêncio, mas pego o carro e saio andando pela pista do meio, subo o vidro se o sinal fecha e me derreto no calor de março sem as águas. Quem são esses que me oferecem flores, mapas, guarda-chuvas, doces, escovas que alisam meus cabelos? Os quero assim, assimétricos e revoltos. Altos. E os temo. Temo serem seres que me sumam.

No segundo dia não dormi, insônia que me insiste. Então fico à espera dos apitos até que um galo canta. E de manhã passarinhos. Mas não eram pedras? Alucinação, São Paulo, são sustos, são vidros, são luzes, são pressas. Eu medos. Medo das pedras, de seres feitos de. O que mais me mete medo são estátuas. Não homens parados como se as fossem, mas aquelas dos cemitérios e das praças. Segredo meu que conto, se souber guardar.

Na outra noite de insônias, cedo ainda, vi homens andando com seus cães pelas ruas e um saquinho de plástico para recolher os detritos dos animais. Eles estão nos shopping, nas ruas, nas casas, nos parques, nos carros. Alguns com sapatos. Alta madrugada, eu desperta ainda. Uma Kombi azul se acomoda perto da guia. Sai um homem de dentro e anuncia pelo interfone o leite. Isso existe ainda? Lembrei de uma cena que nunca vivi, mas devo ter visto em novelas. Mãos que buscam o café da manhã já cedo na varanda. E de Zica. Essa, sim, conheço. Andava com um jegue carregando latões de onde tirava o líquido branco em outras latas que levaram óleo, banha. – Olha o leite, seguia gritando pelas ruas, mas não eram ruas de São Paulo.

Amendoin, cocada, algodão doce, spray que livra multas, esmeraldas que resolvem problemas emocionais, destravam caminhos. O celular que localiza, focaliza e toca em todos os cantos e bolsos, bocas, bolsas. Promoções imperdíveis, desejos, São Paulo, ofertas, empregos, salários, promessas. Eu tenho saudades da você que vi apenas no livro de fotografias, larga e horizontal.

Meu pai, quando estava prestes a morrer, mas só depois se soube, lembrou-se de situações sobre as quais nunca tinha dito. Uma viagem à praia, não aquela em que eu estava. “Mas isso não tem o clima de Porto Seguro”, disse quando segurou minha mão e buscou com o olhar algo que lhe fosse similar naquele quarto triste de hospital.

E um dia me disse em sonhos que eu viria aqui. Parecia vivo e no mesmo dia o telefone tocou. A São Paulo que ele e suas tropas conheceram era outra. A dos retratos, talvez. As ruas em que um primo meu veio buscar seu porto seguro e seus pais andaram em sua procura até que o acharam pelo telefone anos depois em Manaus, mas nunca o viram. Os olhos da minha tia continuam úmidos, iguais aos da moça que vi na Paulista, a avenida que pensei ser infinita para acomodar tudo o que havia guardado em mim de símbolos.

Passei por ela agora em busca de um porto que seja meu, em que possa derramar meus desejos, mas já não o creio seguro. Pego o Lapa T, se não quero passar por tartaruga nem parar de frente ao velho da lateral do Araçá. Deve ser um profeta, mas ainda assim me assusta. Já contei que tenho medo de estátuas, mas é só quando estou sozinha. Se me acostumo com elas e sei onde encontrá-las, preparo para o encontro até que um dia já não incomodam mais. Desvio o olhar.

Saio pela cidade olhando e desviando. Vendo rostos sem olhá-los direito. Querem o que? Temem o que? Vivem onde? Para onde querem voltar? São de todos os cantos. Pergunto numa mania interiorana de buscar semelhanças. E às vezes a metrópole se revela roça, ovo. A amiga de um amigo que conheci na festa do meu aniversário em Brasília, a vi outra vez em Goiânia, quando o amigo em comum se casou. A encontro com o namorado gaúcho, apresentado pela internet, num bar da Vila Madalena, que a bandeira do Cruzeiro ajuda a decorar. Aí tomo uma cachaça para comemorar a amiga, o Cruzeiro, a cachaça. O rótulo é a pedra grande pela qual passei tantas vezes quando São Paulo era apenas um parente próximo de São João, a melhor festa.

Ouço ruídos de carros que passam, buzinam, se chocam e um helicóptero freqüente no começo das noites. Ponho tampões pra esquecer. Três policias sob minha janela erguem as mãos com as armas para cima, para os lados, para baixo. Meio performáticos à procura. Ficam horas até desistir de encontrar seres que moveram a cortina do banco à noitinha. Apago as luzes e me tranco no quarto, sem querer ser alvo de delírios alheios nem assunto dos jornais do dia seguinte. Mulher baleada por policial enquanto falava ao telefone, deveria ser a manchete. Eu não li a descrição que viria abaixo sobre mim, minha vida, minha história, mas discordo de antemão. Quem vai chorar minha morte?

A cidade lá fora me oferece um milhão de possibilidades, mas não saio do quarto. Não me sinto parte dessa cidade gigante, quando vejo a fila de carros na TV, congestionamento quilométrico, se tem chuva. Hoje o dia virou noite às 5h e caíram pedras, depois de um calor que me levou à piscina, nadando sem contar os metros, pensando apenas nas decisões que ainda tenho que tomar. Minhas escolhas.

O que fizeram de você foi um labirinto de ruas com nomes de produtos e portas de vidros para que todos se vejam durante as reuniões e simulem uma naturalidade em meio à tensão pelo espaço. Todos vendendo seus produtos embalados em latas ou no nó da gravata. Palavras que convençam, contatos, mentiras, teatro.

E não paro de pensar nele. Nele que sentou um dia ao meu lado e disse que passaria o carnaval numa fazenda, fugindo da agitação. O que havia em comum entre nós era o gosto pelo silêncio e uma serenidade que via em seu rosto alvo e óculos quadrados de aros finos. Calmaria que os outros dizem enxergar em mim.

Depois me tiraram a cadeira vizinha daquela que ele se apropriou. Fui embora e o revi tempos depois no corredor do emprego que estava deixando e ele visitava. Conversamos rápido, sua voz calma ainda. Quinze dias depois um email me diz que seu corpo virou cinzas. Quantos desses rostos que vejo pelas janelas, nas avenidas, no metrô, no trabalho também são angústias camufladas? Dou meus ouvidos, meus ombros para que chore uma dor que conheço. Conheço em mim.

Às vezes esqueço os dilemas, tranco a porta por fora e saio por aí. Na esquina uma mulher pede ajuda. Vou seguindo, mas viro para olhar sua súplica. Lágrimas me amolecem. Diz que tem fome. Veio de Sorocaba para o Hospital das Clínicas e dois restaurantes lhe negaram comida. Dou R$ 3 e sigo pensando o que matou sua fome, quando sento na cantina do melhor polpetone e pago R$ 22 por uma cerveja e meia pizza. Minha mãe, longe, cozinha uma semana inteira com isso.

Thursday, January 06, 2005

Os mortos

Uma hora ele adormeceu e entrou num caixão, uma parte sob o sol da varanda de entrada. Na sala jazia outra caixa preta apertada, um corpo dentro. Poucas visitas e um santo sobre o corpo primeiro, acima da cabeça. Ele abriu os olhos, eu vi e avisei, mas não deram ciência. Depois começou a dizer coisas desconexas, levantou-se, deixou o caixão. Estava alto, quase gigante. Alguns querendo convencê-lo a voltar. O outro também se levantou e ficaram os dois negando a morte sobre a calçada, enquanto se buscava o enfermeiro longe. O homem chegou, os pegou pelos braços e o primeiro fechou os olhos de novo. O outro ficou vivo até despertar.