Saturday, September 10, 2005

NÃO HISTÓRIAS

Caminhada

De muito antes das seis da manhã, quando tirou os pés de casa pela primeira vez, sabia que aquele não seria um dia comum. Talvez fosse lembrado como o dois de agosto em que o inverno amanheceu com raios de sol mostrados cedo na TV em meio às marcas da poluição que dava ao dia cores difusas e confundíveis. Apesar da estranheza do tempo, tudo igual como vários dias, a não ser pelo que viria a acontecer depois. Tomou café na padaria, leu as mesmas notícias da TV nos jornais, amarrou um agasalho de tricô no cós da calça e, ali pelas 8h, seguiu em direção à avenida Brasil. O horóscopo falara em encontros surpreendentes. Pôs-se, então, a olhar rostos buscando uma familiaridade ainda que distante para que se consumasse a surpresa à seu dia diferente apenas às terças quando cedia ao rodízio e fazia o necessário e indispensável à pé.
Naquela terça o trajeto era longo. Melhor seria com seu quatro portas, bancos de couro, direção hidráulica, air bag e outros acessórios que evitava comentar para não levantar olhos às suas posses. Dois quilômetros e meio para ir, dois e meio pra voltar não matava ninguém. E foi.
Saiu dali dos Jardins, nas imediações do Hospital das Clínicas, em busca de um exame médico na sede do laboratório no fim da avenida Brasil, quase no monumento às bandeiras. A partir da decisão de caminhar, seria um dia incomum por ser também a primeira vez nos seus 59 anos que andaria cinco quilômetros pela cidade, em meio às ruas e carros, sem grades dos parques em proteção.
Nas primeiras quatro quadras desceu a Teodoro e descobriu um som imperceptível aos carros, nos batuques e acordes das lojas de instrumentos. Disse oi aos camelôs das esquinas próximos aos faróis. Um deles nem o reconheceu, acostumado que estava a vê-lo enquadrado na moldura da janela do carro. Comprou óculos escuros gigantes desse, já que esquecera o seu em casa e os olhos não se davam bem com o sol.
Na esquina da Rebouças já se sentia outro sob as lentes escuras de um estilo que não era o seu. Sorriu para vários dos homens que viu à espera do vermelho para tentar tirar um troco no sinal. Ouviu conversas deles e até pensou que a princípio os temia, quando iniciavam nas noites e se aproximavam do vidro no escuro querendo vender flores. Flores nem tão suspeitas assim, foi o que pensou depois que ouviu os homens e se deu conta de que nos seus muitos anos circulando por um raio que sempre demandava aquela esquina, jamais tinha parado ali, estado ali assim inteiro sobre o asfalto do canteiro central enquanto aguardava passagem. Olhou ao alto com uma volta de 360 graus com cabeça e meio corpo e até gostou do que viu. “Se tivesse menos luminosos”, pensou e foi embora em passos vagos, olhando as construções da rua e tentando se lembrar do que funcionara ali há 20, 30 anos, mas só naquele dia percebeu que afora grades e muros maiores, luminosos e câmeras também, não conseguira se lembrar, mas também só passava ali de carro. Devo ter muitos quilômetros de avenida Brasil, fazia uma piadinha consigo mesmo tentando uma soma idiota de quantas vezes ocupou bancos de carros, porque nunca andara de ônibus, enquanto trafegava pela avenida Brasil e que soma numérica isso daria. Ria e fazia suas matemáticas considerando dois quilômetros de extensão e a hipótese de que tivesse passado ali pelo menos quatro vezes ao dia nos muitos dias de seus quase 60 anos.
Quando chegou à igreja Nossa Senhora do Brasil, esquecera a conta quase já chegando à conclusão de que teria visitado muitos lugares, apenas pelo tempo que circulou por ela.
Parou, fez o nome do pai e se lembrou de alguns casamentos que ali presenciara, inclusive o seu, dos poucos que sobreviveram às avalanches que seguiram ao crescimento da avenida.
E foi até o laboratório rindo dos muitos casamentos em que ou na cerimônia ou na festa algo engraçado aconteceu. Às vezes trágico como o de um colega de faculdade que morreu num acidente na volta da lua de mel. Uma história que sempre lhe deixava triste, impressionado que era com a surpresa da morte, que surge às vezes em momentos totalmente dispensáveis. Ele andava e ia somando às horas e mais alguns quilômetros de suas viagens novas primeiras vezes com a cidade numa única terça-feira pela manhã. Às vezes entrava numa rua apenas para conhecer aquele pedaço pelo qual sempre passara e aí percebia, também pela primeira vez, que tinha 59 anos circulando até quatro vezes ao dia pelo local e nunca soubera mais que algumas ruas, além de pedaços nas esquinas. E ia, via as casas, andava um pouco e voltava de novo à avenida Brasil.
Assim chegou ao laboratório num certo deslumbramento consigo próprio por ter atravessado os obstáculos imaginários da rua e até achado bom. São e salvo, tomou água e percebeu que enquanto andara nem percebera que o tempo dava sinais de chuva. Se o calor se mudasse a frio tinha o casaco na cintura para se proteger. Mas por chuva não esperava. Quando o temporal passou, seguiu o caminho de volta, não sem antes conferir o que os exames diziam de si. Colesterol bom, triglicérides e outros níveis que diziam sim era um homem saudável por isso andara dois quilômetros e meio pela manhã sem nem se cansar. E voltou seu trote de volta e quase chegando em casa, na esquina com Atlântica, a chuva voltou e ele ainda assim continuou feliz, pensando que, bom de saúde, podia até tomar uma chuva que não lhe faria mal. E foi, foi andando pelas ruas de São Paulo sob a chuva, também pela primeira vez, até cair com um raio que acertou parte a árvore, parte ele. E antes de morrer sua morte súbita pensou que se soubesse da possibilidade de chuva nem de casa sairia e se lembrou que a previsão do tempo às vezes errava e pensou pela primeira vez em outras notícias sobre as quais nunca saberia tão perto serem verdadeiras ou não. Até de sua morte duvidava.

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